Textos Críticos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MULHER

  

Inexplicável a vida, e a mulher no princípio. Nelas o poço, e no fundo, a lágrima. A dor e a alegria fecundam-se pela semente. A semente penetra-se pela raiz e rompe no espaço. Expõe-se o fruto ao alcance dos olhos. Uma roda gestora aperta-se e explode. Em angústia e espanto centra-se a plenitude fértil. No dentro e no fora, a vida. Em tudo a mulher, e nela a esperança na esfera envolvente.

 

A mulher dobra-se sobre si e na busca encontra um aspecto parcial obsessivo que intenta desvendar para ser compartilhado. Surge, pela urgência de se afirmar pessoa, a coragem de se auto-revelar na multiplicidade da íntima obsessão.

 

E o trabalho brota de uma aparente calmaria interior isenta de problemas e apoiada numa séria análise mental. Afirma uma visão interiorizada do mundo habitado, no tempo quotidiano. Centraliza a condição de participante activa, no mundo. Analisa impiedosamente a sensibilidade desintegrada pela estandardização inevitável do sistema social. Repudia o comodismo do simples objecto procriador. Choca perante uma angústia esclarecida e conscientemente expressa. Fura as malhas cerradas da teia que aprisiona o registo dos próprios valores emocionais. Segue a

transparência solitária da indefinível sensualidade.

 

Rompe o contorno do corpo e apresenta, em potência, uma força única de raiz aparentemente abstracta.

 

A transposição da realidade surge de uma simbologia poética pessoal onde é prioritariamente dada importância à gota líquida - água, lágrima, esperma -; ao gradeamento - corda, malha, grade -; à semente – sexo, fruto, embrião. O processo genético recria-se em termos de dialéctica visual repudiando quaisquer afinidades científico-fisiológicas pois foca a expressão de um movimento fecundador desperdiçado e a captação, no tempo, de uma angustiante força humana.

 

A inter ligação dos elementos experienciados defende a simbologia estética amadurecendo-a no sentido de que, se o espectador intervém, urge o esforço de criar uma linguagem formal que possibilite a comunicação intelecto-sensitiva. Eis porque, numa perspectivação erótica e sensual cuja óptica incide potencialmente na psicologia feminina actuante, habita com carácter de permanência o envolvente movimento da fertilidade.

  

 

Margarida Santos

Novembro de 1974

In: Catálogo «Margarida Santos – Escultura Desenho»

 

 

 

LEITURA PARA UM CICLO DE FECUNDIDADE 

 

Cromossómicas, chovem, procuram-se, comunicam-se, fundem-se as sementes – tentando conceber o feto do sonho ou aquele que traz já impresso os cravos da amargura.

 

No mais secreto da matriz placentária e cósmica, com a baba do sémen, os óvulos tecem, emaranham, enovelam e cerram suas teias do que ainda não é e está para além deles.

 

Na sua potencialidade e força vital, irrompem.

 

Maduros, explodem, como astros.

 

 

Luísa Dacosta

1981

In: «Margarida Santos - Exposição de Desenho»

 

 

 
ENCONTRO / DESENCONTRO

  

Tenho-me por Mulher que se observa no seu próprio contexto; como um espelho reflector do que mais me sensibiliza. Fortemente empenhada na criação de imagens que visualizem emoções e sentimentos aprofundo uma temática de vida sensitiva e obrigo-me a múltiplas aprendizagens no tratamento e maturação dos materiais experienciados.

 

O processo de trabalho desencadeia-se no silêncio interior dos dias onde se incorpora o murmúrio dos papéis e o queimar das pestanas. Nos desenhos enovelo espaços respiráveis entre brancos, cinzas, ocres e azuis diluídos pelo emaranhado das texturas. Ao peso da mão associo o relevo borbulhante das veias com colas e acrílicos, neutralizo o vigor luminoso das figuras sobrepondo-lhe a opacidade das ceras e dos guaches, transfiro a essência dos volumes para a tessitura rítmica dos perfis, fixo o polimento marmóreo das superfícies – universo onde as silhuetas se movem. E sempre obtenho a insatisfação dos resultados! Mesmo assim transfiro-os para o contexto de outras relações inter-pessoais pelo envolvimento que uma exposição requer.

 

Em pé de igualdade comigo busquem as raízes das vossas relações afectivas: aí se encontra a chave do trabalho aqui exposto. Se o fizerem vão encontrar fragmentos de vida – uma sucessão de encontros e desencontros cujos personagens, como nós, desde o início dos tempos, são o Homem e a Mulher.

  

 

Margarida Santos

Novembro de 1983

In: Catálogo «Encontro / Desencontro»

 

 

 

Diante dos espelhos - a Mulher.

Arrogante, segura, vestida apenas da nudez da sua plenitude, sem precisar de asas- braços para cantar a vida - olha-se no espelho da sua aparência. Um espelho que lhe mostra só e lhe devolve a graça do seu corpo-lira, das suas formas-fruto, libertas, espiraladas, coleantes, de conta e concha, a multiplicarem-se na luz, que as torna perfil de gume.

 

Mas no seu espelho interior - o que vê a Mulher?

 

Mesmo à superfície, marcas das agressões da vida, o desengano dos olhos açoitados, a sombra do outro que ainda pesa, mesmo quando a máscara é sobreposta, já arrancada. Nesse espelho-poço a Mulher procura-se. Procura o seu rosto e corpo adolescentes, a perdida infância das casinhas, da espiral do jogo da glória (ou do tempo?), das bonecas que foram filhas, agora tornadas monos, e ainda à altura do peito, que já não aconchega – decepados os braços, que também já não envolvem nem acalentam. Ausentes os lugares, destruídas as paredes, no espelho interior, fundo, no limo dos fundos, a Mulher procura-se entre as que foi. Procura saber-se. E para sobreviver, um equilíbrio entre o eu que é, o ela passado e a outra – a longínqua, a bela, a dolorida e esmagada, perda e só memória. Ora num ora noutro espelho, olha-se. Olhamo-nos. Todos somos a Mulher. Na sua procura.

 

 

Luísa Dacosta

Fevereiro de1988

In: Catálogo «Mulher ao Espelho» 

 

 

 

O rosto feminino, campo de batalha? Rosto devastado, esse, por demónios ardentes que investem no escuro, de garras prontas, e ferem nos paroxismos da orgia. Eros e Tanatos em ligação intempestiva na mesma alcova, volúpia e violência atiradas no gesto, luz e sombra como exorcismo. Pinturas no feminino. Notícias do massacre. Margarida Santos sobreviveu ao espantoso bombardeamento de outra Guernica, cidade feita de carne explodida de um mapa à flor da pele.

 

Mulher que se pretende sem braços, impossessiva, Margarida Santos reconstrói o rosto há pouco a boiar na superfície de águas pútridas. Imagem recuperada para lá da película de sujeiras de uma sensualidade atormentada colada aos olhos e de um erotismo a trovejar a fogo marcadas na memória. E, nessa maturidade de águas revoltas, entre os derradeiros laços indesfeitos dos cabelos, surgem as bonecas e os jogos da infância, tão distantes e tão próximos.

 

Além ficou a mulher-semente, além estiveram os amantes imperfeitos. Rodeava-os uma ténue música, ondulante como o prazer procurado, quando a figura máscula se embuçava para alguns encontros secretos. E, logo a seguir, o rosto feminino desdobrou-se noutros rostos múltiplos interseccionados, numa dança de máscaras ou rito de ser que como o vento rodopia, incapturável.

 

Agora, numa intimidade desfeita em vertigem e a custo recomposta num grito estreme, a mulher solitária que se contempla ao espelho assume a sua carne nua tatuada pelas incisões repetidas do sofrimento. Não foi pelo amor que se libertou, foi pela dor, e disso ela se orgulha perante a sua imagem devolvida e reencontrada, o duplo do corpo que vemos dentro do espaço outro criado pelo espelho. Triunfa a escultura sobre a melancolia inclinada das pinturas, o bronze erguido sobre o papel pela mão desta artista-biógrafa de emoções plásticas verdadeiras.

  

 

Arsénio Mota

Fevereiro de 1988

In: Catálogo «Mulher ao Espelho»

 

 

 

O humano sobressai do preto e branco, texturado e fino.

Em ânsia de liberdade esvoaça cantando, subindo à procura de novas formas, novos ritmos...

 

Em fragrância suave, delicada e violenta, em encontros baléticos nus e tímidos, em provocações constantes cheias de suspense e ternura, procura espaços siderais, por entre véus de ansiedade e dolorosa insatisfação e angústia.

As pedras, essas rochas humanizadas de cristal, junto ao mar esperando por encantos, emoções transpiradas de vidro, sem peso e sem areia...

 

Mulheres viúvas olhando o além, desejo sem fim de ver o que já não vive, quietas e mudas, gritam na liberdade de ali poderem ficar "penugentas de vida," em impressões...

  

 

Gilberto Leal

Johannesburg, Dezembro de1989

In: Catálogo: «Margarida Santos - Memórias»

 

 

 

A mulher. Em desenho e em escultura - a mulher. Deita-se ao longo da linha de água do seu corpo ou enovela-se sobre si, como uma flor que se fecha – sonho lunar ou respiração de um desejo, que supõe ainda o outro, no desenho. Na escultura, porém, ela é a sua própria génese, trabalhosa, de larva ou crisálida, e não depende já de outro e qualquer bafo. Do pó da terra, ferida de sofrimento e morte, ergue-se, por si. Arqueia-se, catapulta-se para ganhar asas, movimento e vida. É tronco e haste. Arrogância no vento -  a cobra ondulante do dorso, os pomos dos seios, a florescer na luz. Agressiva, inteira, de joelhos agudos e de cabeça erguida, audaz, caminha em direcção a um destino cego. Vestida da essencialidade das suas formas e arrastando consigo a amarga semente do sofrimento, que lhe corta os flancos, uma lágrima bastará para torná-la fonte…mas caminha, segura, no chão conquistado. A sua fragilidade transformada numa dádiva à vida.

 

 

Luísa Dacosta

1990

In. Catálogo «Só Mulher Só»

  

 

 

RELAÇÕES CIRCULARES NA OBRA DE MARGARIDA SANTOS

  

Numa rua do Porto, há muitos longos anos, encontrei a escultora Margarida Santos. Por inominada sorte, onde a história decorrera tinha topónimo de mulher, santa como assim: conceição. E contudo, rua de nossa senhora, obviamente, da concepção, espaço de bronzes, harpas, gessos e correntias fertilidades. E, por entre tudo isto, corria o dulcíssimo ano de mil novecentos e setenta e quatro.

A imponderável graça do lugar, que não sei se é teológica ou moral, marcou o acolhimento, feito de úteros experientes pousados em brancos plintos de macieira. Por essa altura, então, fixei enternecido ávidas formas redondas e abertas. Decerto, todas fruto de ressarcidos apegos. Fixei-as, talvez por isso, com perseverante espanto, o mesmo espanto dos adolescentes supliciados por súbita imbibição diante de um ventre escumante de uvas e temores. "Deslumbrados úteros ou ínfimos segredos?" - perguntei como se não tivesse já um filho, nascido felizmente sem abusivas intercedências do Espírito, que é glória e vontade do Pai. Mas que sabia, eu, do fascínio que vestia ou desnudava as esculturas: intemporal plantio de medos ou discretíssimos corpos de carícias finas?

Não devo, em torno da voz de Margarida Santos, entrar no que precede a obra, a sua. Todavia, são os assombros e possessões, os prazeres e desprazeres que, mais do que o bronze, o barro e a água, nos fazem florescer para o descobrimento do mundo, que a escultora, na fixação de formas e volumes, nem esconde nem mostra. A luminosidade dos seios, o perfil das coxas e das pernas fortes e compridas, levemente entreabertas, sendo surpreendidas maravilhas, são, de facto, emoções enunciadas, que reflectem o remorso dos homens e o amor dos deuses.

"O encontro erótico, embora possa correr bem, está sempre sob sentença"- diz Francesco Alberoni. Assim, desse modo, também estamos na defrontação com a obra de Margarida Santos.

 

 

Maurício de Sousa

Darque, 20 de Outubro de 1991

In: Catálogo «NU FEMININO / ESCULTURA»

 

 

Formas de mulher que se enrolam sobre si próprias como que procurando refúgio em espaço uterino. Formas de mulher fechadas em espaços limitados por agressivas formas triangulares. Formas de mulher em atitude de declarado desafio e evasão. É neste contexto que a escultora nos transmite, muito para além da mera identificação da forma feminina, por intermédio de três meios de expressão - desenho, pintura e escultura -, o íntimo, o drama e a ânsia de liberdade da mulher, no seu significado mais amplo, quase absoluto.

 

É deste modo que Margarida Santos, mais uma vez, evidencia qualidades criativas, duma certa forma provocadora, até porque a provocação é necessária ao acto criativo. Efectivamente, há neste conjunto de obras uma expressividade dramática, quer na linha, quer na cor, quer na postura dos pequenos bronzes, que nos induz a interrogar-nos sobre todas as questões subjacentes à arte.

 

No momento do desenho, meio de expressão mais consciencializado e, portanto de raiz mais racional, as linhas adquirem um carácter compositivo, dinamizando o espaço bem delimitado. A pintura é de pendor expressionista, quase gestual, em que as vigorosas pinceladas denunciam uma revolta interior e as cores não são menos apaziguadoras, pois os fortes contrastes são sintoma de profunda inquietude.

 

As esculturas apesar das suas pequenas dimensões, constituem um poderoso meio de intervenção no espaço circundante. Tal facto resulta, sem dúvida, da força expressiva que dimana das formas escultóricas. Agressividade ou suavidade, recolhimento ou evasão são atitudes bem expressas, numa clara mensagem de desafio.

 

 

João Coutinho

Março de 1992

In: Catálogo «Formas de Mulher»

 

 

DO AMOR E DAS FORMAS

AS FORMAS DO AMOR

 

A ESCULTURA DE MARGARIDA SANTOS

 

«Não chegamos já à conclusão de que se ama o que nos falta e o que não se possui?»

 

Platão - O Simpósio ou do Amor

 

 

DAS FORMAS

 

«C’est lentement que je parvins à découvrir le secret de mon art. Il consiste en une méditation d’prés la nature, en l’expression d’un rêve toujours inspiré par la réalité.»

 

Henri Matisse - Écrits et propos sur l’art

 

 

O atelier de um escultor deve parecer-se um pouco com a grande oficina nas vésperas da criação do mundo. Também aí o sonho devia modelar as formas segundo um desígnio ainda sem nome, aureolado por uma luz envolvente como um casulo ou um abraço. Foi assim que vi o atelier da escultora Margarida Santos, num fim de tarde, que emprestava às finas silhuetas de barro, de gesso ou de bronze um encanto e uma nostalgia suplementares.

 

Neste atelier parece residir o segredo de uma obra que se situa claramente na grande tradição da escultura figurativa moderna, que passa por Degas, Bonnard, Matisse e Giacometti, pintores-escultores, para quem a pintura constituía o pólo central da sua criação, sem por isso deixarem de marcar o cunho da sua originalidade e pujança plástica, o mundo das formas da escultura. Margarida Santos tem-se movido igualmente entre o desenho, a pintura e a escultura, mas é neste último modo de expressão que o seu talento, sentido estético e mundividência poética se tem afirmado, desde o início da década de setenta, com os seus primeiros trabalhos.

 

Margarida Santos tem vindo a definir na sua escultura um estilo muito pessoal, que integra o arabesco matisseano- Matisse é uma das suas referências fundamentais - e ao mesmo tempo revelando uma tendência para a síntese formal de pendor construtivista, acentuada pelo jogo evidente ao nível da composição das massas e dos volumes, de sentido não apenas formal, mas poético.

 

 Não basta no entanto, apontar algumas referências, descobrir-lhe as honrosas filiações, a sua linhagem, a que soube dar continuidade. Não se pode resumir uma obra, como não se pode resumir um universo. Podemos estudá-la com os olhos do espírito e do coração, sem lhe destruir o encanto, a sua poesia interior. Voltamos de novo à memória do seu atelier, onde à poeira depositada pelo tempo sobre as formas, se acumulou também a magia de um espaço marcado pelo desejo e pela liberdade, que pretendem unir o real e o possível.

 

 As figurinhas parecem suavemente adormecidas, mas este sono é feito de uma volúpia material, de uma véspera de água, de um silêncio encantado, que se alimentou da luxuriante sensualidade do visível e a decantou até a transformar numa essência que apenas guarda o seu fulgor e uma beleza palpável. Recolhidas sobre si mesmas, pequenas conchas terrestres ou moradas de um incêndio calculado e generoso, elas meditam o seu próprio enigma e a sua condição de seres para a morte e para uma vida anunciada, de que são portadoras. Crisálidas, ou berços de uma luz nocturna, uma luz que nascesse, semente milagrosa, do próprio âmago das trevas, como elas parecem nascer, flores pensativas, do próprio caudal sem tréguas e tão efémero, da oculta matéria do mundo.

 

As mãos criam o suave começo do barro, transportam do nada para a vida das formas estas criaturas do puro fascínio e da melancolia. Assistimos através dos brancos gessos, de uma claridade lunar, talvez esse astro do sonho as tenha fadado à nascença, à génese das esculturas em bronze, gradual e paciente, uma paciência que pressentimos fazer parte igualmente da sua substância. O barro é desconstruído pedaço a pedaço, rodeado pela matéria, tornada o seu oco reverso, enchida mais tarde pelo gesso. A forma assim criada, envolvida pela areia, de novo dará lugar ao seu próprio vazio, onde circulará um rio de metal, temperado pelo fogo, que dará origem às obras definitivas em bronze, num processo próximo da alquimia. É verdadeiramente surpreendente que guardem toda esta doçura, que se desdobra em mil poses de imóveis bailarinas, numa coreografia que as põe frente a frente com o seu mistério e a sua solidão.

 

Os bronzes de pequena dimensão, fazem-nos esquecer a escala reduzida, alertam-nos para uma grandiosidade íntima, secretamente partilhada no silêncio e na contemplação, vibrando na estilizada postura destes arabescos com figura de mulher, por vezes incompletos, como se o mundo feminino de que fazem parte fosse captado realmente no momento da sua génese, ou no instante que precede a sua desintegração. Entre o nascimento e o nada em todo o caso, dúcteis e fragrantes, elas concentram a mesma maleabilidade e força das formas vivas do mundo vegetal. Vegetais e aéreas, delgadas e uterinas, serenamente voluptuosas, podem elevar-se, como árvores soberanas ou arbustos ardentes do visível, como colunas benfazejas, de um templo solar e nocturno do humano, que se recorda da sua origem divina. A sua carne é simples, de uma frieza apenas aparente, na sua perfeição sem mácula, de metal. Reúnem tudo, são tudo, porque evocam o próprio nascimento, o seu também, metáforas de pequenos universos, que espelham o perfume do real, o seu halo invisível, brilhando secretamente no seu corpo do mundo.

 

DO AMOR

 

 «Amor, ilha sem horas,

Ilha rodeada de tempo,

                                      claridade

sitiada de noite.

Talvez amar seja aprender

a caminhar por este mundo.

 

Octavio Paz- Árvore Adentro

 

E no entanto a pungente solidão de grande parte das figuras fala de uma ausência, de uma fatalidade, de uma perda, como se elas precisassem da completude de um olhar, de um corpo, do reconhecimento da sua harmonia e integridade. Na esplêndida série dos abraços, a mulher encontra o duplo material que desfaz a sua inquietude, espécie de abrigo sensual, ou de eixo, numa verticalidade assumida, que confirma a sua vocação de plenitude. Trata-se de um encontro, que volta a instaurar o espaço dentro do espaço e que ao tempo devolve a sua condição de eternidade. Trata-se também de uma união, do feminino e do masculino, do humano e do cósmico, do cósmico e do divino, de uma totalidade amorosa, amorosamente pressentida, desejada, gerada no espírito e finalmente arrancada à matéria, que sabemos a oferece, como a sua dádiva mais preciosa, a quem dolorosa, perigosamente, sem esperança e com esperança, com temor e alegria, a solicita.

 

Trata-se sem dúvida aqui, também e sobretudo, do amor. De um amor que vive de uma ausência fundadora da sua própria existência, de um amor que tem a forma do existente e de um mais além que lhe está reservado, que se anuncia na presença e na distância, talvez o amor inicial que unia o Criador às suas criaturas, talvez o amor do humano pelo divino, de um amor que nos restitui o maravilhoso e que nos ensina a caminhar pelo mundo, com o mundo dentro, com a sua mais pura, delicada e sensorial substância.

 

Assistamos pois ao espectáculo das formas deste universo, a esta encenação de um sonho de movimento, que encontrou no repouso da forma a sua morada possível, movimento eterno sem dúvida, o do espírito, que a arte traduz e que aqui se detém um instante, mistério de um arabesco que se cristaliza, sem perder nada da sua graça, uma espécie de voo surpreendido a meio caminho entre a terra e a luz. Um sonho do humano, inspirado na observação da vida e  na vida mais autêntica dos sonhos.

 

 

Maria João Fernandes

Natal de 1994

In: Catálogo «Do Amor e das Formas»  

 

DO EROTISMO

Do barro dúctil e informe à peça que se define, imutável na sua rigidez, medeia um longo caminho de concepção nunca isento de imediata procura, de experimentação e do sofrido recomeçar, por mais objectiva que seja a representação mental do que se pretende comunicar plasticamente.

Em Margarida Santos é idêntico o processo de criação, pese o saber do ofício, vertente que facilita a execução, mas que não exclui o percurso entre a ideia e o objecto contido nos seus limites, sua dinâmica, seus volumes e sua mensagem.

Ao ocupar-se da Mulher e da maternidade, em fase anterior da sua obra, esta autora já havia sinalizado o seu interesse pela harmonia dos corpos no esplendor da nudez. À exaltação da linha curva, da volumetria esférica e da beleza inerentes à figura feminina, Margarida Santos juntou o vigor e a complementaridade simbolizados pelo elemento masculino, exaltando, assim, a paixão e a sensualidade.

O erotismo, corolário de um ciclo de produção escultórica que reinventou o começo e a continuidade do amor, inspira-se na vida para traduzir, com franca modernidade, uma obra impressiva e peculiar.

A presente exposição, que inclui significativos trabalhos de fases anteriores e importantes desenhos sobre os temas desta mostra, merece sem dúvida uma atenta visita à Galeria de Arte do Casino Estoril.

 

 

Lima de Carvalho

Março de 1998

In: Catálogo «Do Erotismo»

 

 

 

ABRAÇOS - ABRAÇO

 

Um olhar sobre a escultura de Margarida Santos

 

A intimidade e a nudez da entrega. A procura, erótica, do encontro e do ajuste dos corpos. O comprazimento no desafio, no confronto, na ternura esquiva, que demora a submeter-se à entrega e ao repouso no corpo do outro – esteio de arrimo e descanso. O jogo balético, em trânsito, alado, quase em voo, da nudez que, ora tende a fechar-se na fusão dos sexos, como um gineceu, ora se abre deitada e preguiçosa, como corola de flor à luz.

Visão não inteiramente realista, já que a arte verdadeira tende à intemporalidade e ao mais além. Mesmo os corpos, apesar de uma realidade estrutural e volumétrica, do masculino e do feminino, o que acentuam, preferencialmente, são linhas de força, quer em altura, quer sinuosas de onda. Depuradas, reduzidas à essencialidade, quer no dorso e na quebra dos rins se confundem com o próprio enlace ou com um rio de cabelo, que está ou poderia estar. E também nos rostos apenas acentuam e adoçam as diferenças. E por isso, este erotismo de abraços não é apenas isso. Remete ao arquétipo do abraço único, em que mais do que à fusão dos corpos se aspira à fusão da alma e ao sabor do eterno. O que vemos para além destas linhas de dorso e flancos, que ora acentuam a verticalidade do afrontamento ora a lassidão, abandonada, da entrega?

Estes abraços - abraço (e sem braços para abraçar, comportando a dor da amputação, que sempre existe na relação humana) remetem à intemporalidade do símbolo e vão de encontro às raízes do mito, quando Isolda se deita ao longo do corpo, morto, de Tristão e o estreita, cerramente, «corpo contra corpo, boca contra boca», para render a alma na fusão última, e já sem barreiras entre o eu e o tu. Fora do tempo. Na eternidade. 

 

 

Luísa Dacosta

Mosteiro de Osera, Maio de1999

In: Catálogo «Abraços»

 

 

 

MARGARIDA SANTOS

ESCULTORA DE SENTIMENTOS

 

As emoções e os sentimentos são dominantes nas esculturas de Margarida Santos, onde a temática da mulher, da maternidade, da fertilidade, do amor e da relação amorosa está sempre muito presente.

A artista que nasceu em Canelas, V. N. de Gaia, onde vive e trabalha, que faz medalhas e também monumentos escultóricos, como «O Pedreiro», para o Museu do Granito ou o busto de «Aristides de Sousa Mendes», em Bordéus, também desenha, «desenhar é respirar, é estar livre», e escreve artigos de opinião e crónicas. Com a licenciatura em Escultura da Escola de Belas do Porto, considera-se, também professora por opção.

«Inexplicável a vida e a Mulher no princípio. Nelas o poço, e no fundo a lágrima. A dor e a alegria fecundam-se pela semente. A semente penetra-se pela raiz e rompe no espaço. Expõe-se o fruto ao alcance dos olhos». São palavras da Escultora, em Novembro de1974, no catálogo que apresentou na Gulbenkian, em Lisboa, um ano depois da sua primeira exposição individual na Galeria Abel Salazar, no Porto, com a mostra intitulada, «A Semente».

Afirma ainda: «A mulher desdobra-se sobre si na busca da totalidade humana, e na busca encontra um aspecto parcial obsessivo que intenta desvendar, para ser compartilhado. Surge, pela urgência de se afirmar pessoa, a coragem de se auto-revelar na multiplicidade da íntima obsessão».

«As formas do amor», «Nu feminino», «Os amantes imperfeitos», «Mulher ao espelho», «Memórias», «Mar», «Só mulher Só», «Recolhimento», são, sem ordem cronológica, alguns títulos que ressaltamos das suas exposições. A última, «Do Erotismo», que incluía significativos trabalhos de fases anteriores, foi no Casino Estoril, onde fomos encontrar a artista, para uma entrevista há muito adiada.

Luísa Dacosta, a Escritora nortenha de «A-Ver-o Mar», que tem acompanhado de perto, com apreço e atenção, o trabalho da Escultora escreveu: «Arrogante, segura, vestida apenas na nudez da sua plenitude, olha-se no espelho da sua aparência. Um espelho que lhe mostra só e lhe devolve a graça do seu corpo-lira, das suas formas-fruto, libertas, espiraladas, coleantes, a multiplicarem-se na luz, que as torna perfil de gume».

Explodimos com perguntas. Como é que tudo começou? Pode dizer-se que trabalha os sentimentos? Que os corpos vigorosos e vitais sustentam cabeças muito espirituais? Que procura a expressão do movimento, dos conceitos tanto como das emoções?

Tudo começou onde tudo começa… «na infância, riscando ´bonecos` na eira e nas paredes. Foi um esforço conseguir que a família deixasse a ´menina` frequentar Belas Artes, ´um antro de doidos ` como se dizia no meio rural onde nasci».

Margarida Santos não se lembra propriamente da primeira peça que esculpiu, mas fala-me da «primeira que se viu em gesso. Uma ´Mulher Sentada`, expectante, feita com total liberdade», liberdade que lhe foi dada pelo seu professor, o Escultor Mestre Barata Feyo, como recorda. Recorda e brinca. «A peça ainda tem braços e data de 1965». Os corpos, os corpos. «Sim, há uma força vital emanente dos corpos, que é intencional. Dou grande ênfase à volumetria das zonas que incorporam a sensualidade por excelência e, de um modo geral, estilizo e depuro cada parte para que o mistério e a sedução persistam».

O movimento do corpo, a dança. «O movimento, até pela parte da influência da dança clássica que eu adoro e foi onde encontrei a componente estética que tem servido de suporte à minha Escultura. É nesse movimento etéreo que reside um dos lados ocultos da minha obra, onde às figuras foram ´retirados` os braços: para mim os bailarinos dão a ilusão de terem asas, como os anjos».

Ainda o corpo, o corpo das mulheres. Margarida Santos explica e é explícita: «O aspecto estético do corpo feminino constitui, ao longo dos séculos, uma enorme parcela das preocupações dos artistas, que a tomaram como Musa inspiradora, o que aconteceu também comigo. Eu sempre me debrucei sobre a psicologia feminina actuante. Acho que as mulheres são o motor da humanidade, cheias de força e quase sempre tão esmagadas! A densidade do sentir feminino precisa de ser objecto de canto e de glória». Mais concreta e precisa. «Não consigo imaginar a concepção de posições corporais sem que estas impliquem atitudes - há uma relação directa entre as posições e as atitudes, um equilíbrio entre elas: o desafio, a entrega, o abandono, em pé, enroladas, deitadas!...são uma e a mesma coisa, ligadas e fundidas».

Sensualidade e erotismo sempre presentes: «É um feminino que se olha a si próprio até aos limos e força o espectador conduzindo-o eficazmente até eles. É um feminino sensual, erótico, poético, que perturba e mexe com a sensibilidade do outro, que o seduz, o agride, o interroga, mas não o deixa indiferente. É uma essência apelativa que não vive sem o outro e no outro quer viver intacta».

Pode dizer-se que trabalha plasticamente a relação entre o homem e a mulher? «Oh, sim, sempre!

O corpo veicula a mais extensa das expressões, que correspondem a estados de alma, ao que é mais íntimo, ao sentir profundo do indivíduo. O corpo é um invólucro (acredito na reincarnação) que não consegue deixar transparecer todas as emoções, pensamentos e sentimentos que trespassam a Mulher. Tenho pintado, desenhado e esculpido sobretudo a Mulher, contextualizada no ambiente, e o homem tem sido uma espécie de cometa (fugidio) feminino, algo com uma presença discreta. Na série «Abraços», dou-lhe complementaridade total».

Margarida Santos trabalha sem ritmo certo, fazendo mil coisas ao mesmo tempo, durante o mesmo tempo, melhor dizendo: «O meu tempo é arrítmico, dividido entre mil e um afazeres, portanto não tenho um ritmo certo para o trabalho criativo. Eu preciso de muita maturação interior antes de me lançar ao ritmo do relógio. Quando chega o momento, perco o controle sobre as horas».

Deixemos a artista. Fiquemos com as imagens de um atelier cheio de figuras com movimentos vitais e com alguns títulos das suas esculturas: «Enrolamento», «Evocação», «Espera», «Enigma», «Protecção», «Indomável», «Reflexão», «Inocência», «Acaso», «Disfarce», «Levitação», «Busca», Expectativa», «Depuração», «Abandono», «Crisálida». Títulos cheios de intenções e de tensão, tal como as suas esculturas, essas suas figuras com alma nas linhas do corpo.

 

 

Maria Antónia Fiadeiro

Setembro de 1999

In: «Casa Decoração»

 

MARGARIDA SANTOSnasceu em Vila Nova de Gaia (Canelas) no dia 27 de Novembro em 1946. Na área da escultura trabalha as suas peças, fundamentalmente, em bronze e numa linguagem figurativa cuja temática é quase exclusivamente a mulher. Consta, no seu já extenso curriculum artístico, que se iniciou no Curso de Artes Decorativas Soares dos Reis, no Porto, em 1962, antes de frequentar o Curso Superior de Belas-Artes do Porto, em escultura. Enquanto aluna da ESBAP, obtém durante esses quatro anos uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e é também distinguida com o Prémio ''Ventura Terra". No ano de 1968, a escultora concluiu a Licenciatura com a classificação de dezanove valores. A partir dessa data, como a maior parte dos escultores portugueses, tenta conciliar a sua actividade de escultora com a actividade pedagógica do ensino e nessa medida, em 1970, Margarida Santos tira o Curso de Ciências Pedagógicas da Faculdade de Letras de Coimbra e, dois anos mais tarde, faz o estágio pedagógico e exame de Estado, com a classificação de dezoito valores, cuja tese foi subordinada ao tema "A Criatividade na Educação Artística", tese que mereceu publicação. A partir do ano de 1973, a escultora participou em inúmeras e significativas exposições individuais com obras de desenho e escultura. Durante dois anos (1972-74), Margarida Santos é subsidiada pela Fundação Gulbenkian para desenvolver a temática "Mulher-Fertilidade", expondo os seus trabalhos na Galeria Abel Salazar intitulada "A semente" em 1973 e, seguidamente, em 1974 na Galeria Espaço, "A Mulher/Fertilidade", ambas realizadas no Porto; em 1981 e 1987, em grupo, sob o título "Lugar das Delícias", na Casa Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia. Margarida Santos nunca se desligou desta temática. Em 1981 mostra os seus desenhos numa exposição intitulada "Mulher, Explosão de Sementes, Nascimento" e, dois anos mais tarde, expôs "Diálogo", na Galeria Roma e Pavia, no Porto. Foi-lhe atribuído o "Prémio de Desenho", pelo Governo Espanhol, na Exposição Rio Douro/Artes Plásticas. No aspecto técnico, a escultora tem desenvolvido o seu trabalho, fazendo uma excelente assimilação do estilo dos grandes escultores contemporâneos internacionais, que se inclinaram para uma figuração com aspectos de modernidade, nomeadamente Constantin Brancusi (1876-1957), Henry Moore (1898-1986) e Alberto Giacometti (1901­1966). Contudo, trata-se apenas de uma assimilação de referências pontuais, dado que a escultora conseguiu encontrar, ao longo do seu percurso, uma linguagem própria, bastante acentuada, codificando-a. No domínio da escultura figurativa é uma importante presença portuguesa, inconfundível no plano estilístico, com inegável talento e grande apuramento técnico. As suas peças em bronze, apesar de serem com frequência trabalhos de reduzidas dimensões, alcançam um aparente gigantismo longilíneo, através de figuras esguias, que transmitem a energia que a artista lhes deposita. Estamos, desta forma, perante um exemplo vivo de uma escultora plena de qualidades criativas, com características de uma contemporaneidade esclarecida. Como afirma Júlio Resende: ''A Arte só tem razão de existência, só o é efectivamente enquanto expressivo objecto de comunicação". São de destacar as suas esculturas em bronze, que estiveram expostas recentemente na Galeria Lóios, no Porto em 1991 e 1992, denominada "Recolhimento"; na Galeria de Bocage, Setúbal, "Só Mulher Só", em 1990 e no Auditório Municipal de Gondomar, exposição intitulada "Nu Feminino" em 1991, onde estiveram presentes as obras: "Estranheza", "Abandono", "Equilíbrio", Expectativa", "Espavento", Extensão" e "Busca". Esta última também esteve figurada na VII Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada em 1992. A escultora tem colaborado assiduamente nas anteriores Bienais de Vila Nova de Cerveira, respectivamente na II, IV e V. É de salientar igualmente a peça que esteve representada na III Mostra de Escultura de Ar Livre na Amadora, em 1991, chamada "Serenidade". Da mesma forma, a escultora esteve presente na II Mostra, em 1989, com um outro género de trabalhos que também realizou, com menos originalidade, que são os chamados "Relevos escultóricos". Estes estiveram também presentes na 3ª Bienal de Escultura e Desenho nas Caldas da Rainha, em 1989, com um gesso, sob o título: “Lugar das Delícias”. Margarida Santos mostrou na anterior Bienal (2ª) das Caldas da Rainha, em 1987, três gessos patinados: "Mordaça", Bofetada" e "Silêncio Forçado", obras de grande interesse simbólico, relativamente aos temas apresentados, mas ainda distante das figuras femininas, ultimamente executadas. Margarida Santos, sem abandonar o figurativo, aparece com estes "estranhos seres femininos", cheios de inquietação, dando-lhes um esvaziamento que trespassa os corpos simultaneamente brilhantes e sombrios e, na mesma contradição, luzidios e baços, de mecanização artificial, de teor surreal, quase não humanos, como se se tratasse de corpos/objectos desmaterializados, mas de uma extrema sensibilidade. A escultora explora os bronzes exclusivamente femininos, em todas as variantes e posturas, evitando uma repetição constante, que poderia aparecer entre uma obra e outra. No entanto, prevalece fortemente o estilo da artista, como que numa tentativa quase de pretextos, oferecendo-nos "tudo" o que lá vai dentro numa atitude tanto de recolhimento como de desafio e de evasão. Frequentemente, encontramos, nestes conjuntos escultóricos, uma certa agressividade nas linhas contornantes marcadamente definidas. As peças obtêm, assim, pormenores extremamente expressivos nos volumes angulosos, pontiagudos, de massas arestosas e joelhos agudos, em que partes do corpo são subtilmente decepadas numa construção de formas puras que terminam quase em triangulação. As obras escultóricas são intensas de energia e de movimentos incessantes, terminando como que em espirais ásperas e ascencionais, transmitindo na sua expressão uma insatisfação permanente, dramática e profundamente psicológica, que se coaduna, por um lado, com o sentido da própria criatividade da escultora e, por outro, um sentimento do drama da condição do Ser-Mulher. As cabeças "Brancusianas" descrevem formas elípticas que acompanham inteiramente esses corpos deformados longitudinalmente, como que aprisionados e reduzidos a simples troncos, por vezes hasteados; plenos de dinamismo e de sofrimento algo Giacomettiano, como se estivéssemos perante figuras esvaziadas ou ocas, cheias de cortes, de fissuras, de rabiscos, andando à procura desesperadamente de preencher um espaço para transmitir e comunicar as suas angústias e de explodir os silêncios que as cercam, permanentemente. Dizia Giacometti: "I/oir le vide, c'est placer dans un percept que/que chose qui en fait partie en ne s’y trouvant pas, et remarquer cette absence comme propriété d'un présent'. Sem dúvida que "Observar o vazio é colocar no perceptível qualquer coisa que faz parte desse vazio, mas que não se observa, assinalando essa ausência como propriedade do presente".Assim Margarida Santos transporta esse vazio para as peças escultóricas. O conceito de qualidade e de autenticidade artística toma aqui na obra de Margarida Santos o lugar de "belo" artístico, como definição do valor estético e como realização feliz no resultado do processo expressivo. No meio desta plenitude plástica, a escultora faz constantes pesquisas para encontrar soluções na formalização de seres femininos, que desempenham principais papéis, transparecendo ou transmitindo silêncios que acabam por nos cercar, porque há uma incompreensão e um não-diálogo que é difícil de "abrir" e de desabrochar. Tudo o que é belo é triste, de facto, por intermédio, desta "beleza" "torturada", os bronzes de Margarida Santos apresentam uma contorção irresistível e obcecante, expressando finalmente a tensão duma mulher-escultora numa constante inquietude reflexiva e meditativa, que deposita nas suas peças a própria fragilidade, mas ao mesmo tempo uma força plástica de grande interioridade. Por isso, as suas figuras não se escondendo, não se revelam inteiramente. Sem dúvida que podemos adaptar o que disse Jean Genet à convulsão artística da escultora Margarida Santos: "Na origem da beleza está unicamente a ferida singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si; preservada, e onde se refugiam ao pretenderem trocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda". A escultora diz-nos o seguinte: "Em pé de igualdade comigo busquem as raízes das vossas relações afectivas: aí se encontra a chave do trabalho aqui exposto. Se o fizerem, vão encontrar fragmentos de vida - uma sucessão de encontros e desencontros, cujos personagens, como nós, desde o início dos tempos, são o Homem e a Mulher". Podemos assegurar que Margarida Santos faz parte dos artistas que produzem Arte, talvez, antes de tudo, por ser uma necessidade interna, tanto poderá significar um meio de comunicação, como definir-se sendo um fim. Fazer escultura pela escultura tem de facto "aparentemente" algo de "gratuito", no sentido de não querer propor nada, a não ser a própria escultura, como discurso/mensagem. No momento exacto da criação, o artista recebe com certeza algum influxo exterior (influências), mas o principal é um "todo" concentrado e interior no indivíduo. A criação não é a resultante de uma totalidade colectiva, pois isso seria demasiado simples para explicar desta forma o fenómeno artístico. E, desta maneira, a diferença entre o criador e o não criador não teria nenhuma importância, e isso seria incompleição, pois a relevância do criador é indiscutível, dado que esses "momentos" de extremo ápice não nascem, nem todos os dias, nem com a maioria das pessoas. Quem fala realmente de criatividade, fala de inconformismo. Como dizia Giulio Argan: “Se o componente estético viesse a desaparecer do sistema cultural de amanhã, todo o património artístico da humanidade deixaria de ter valor e acabaria, mais tarde ou mais cedo, por regressar ao nada”. No entanto, a maior parte dos críticos de arte em Portugal apresentam uma preocupação demasiadamente tendenciosa na "leitura" da obra artística, consagrando unicamente o ponto de vista sociológico. A maior parte das vezes poderá existir um desacordo entre os artistas e o poder que o rodeia, seja ele qual for, mas não me parece que seja a razão principal para fazer escultura ou pintura.

Manuela Synek – 1999
In: «Escultores Contemporâneos em Portugal»Estar Editora

 

 

AS SUGESTIVAS FIGURAS DE MARGARIDA SANTOS

 

 

Esculturas e pinturas, duas características especiais nas quais Margarida Santos evidencia, de imediato, estudos, pedagogias e experiências acumuladas no decurso de uma vida, se não longa em anos, aproveitada ao máximo com trabalho e com perseverança.

Analisando as suas esculturas sobre temas do amor de imediato se compreende que partem de um conceito de olhar largo, de volumetrias que necessitam de apoios, espaços e perspectivas.

Assim, com o seu tamanho mediano, nós imaginamo-las literalmente ampliadas, recebendo luzes e sombras naturais coerentes com uma concreta realidade urbana.

Estes sinuosos e escultóricos corpos, femininos e masculinos que Margarida Santos interpreta, desenha-os e recria-os com rigoroso construtivismo, seguindo códigos que buscam a síntese e a esquematização sem perder, nunca, a expressividade instintiva e descritiva. Estas linhas, rectas e curvas, tratadas dentro de simbolismos e valores corporais levam a conseguir bronzes - peças únicas - onde o gesto e a dinâmica propiciam uma cadência de linguagens distintas de quem lutou e se formou a si mesma, com uma personalidade alheia a modas e aos modos dos outros. E como muito bem dizia o psicólogo Robert J. Sternberg: "Não há que ser o melhor, senão ser o próprio".

 

Isto verifica Margarida Santos sendo fiel às suas vivências e às suas emoções tanto natridimensionalidade escultórica como naspequenas telas pictóricas possuidoras de estimulantes subtilezas.

 

 

Félix Riaza

Barcelona, Outubro de 2001

In: Catálogo «Del Amor»

 

 

 

O BRANCO NU BRANCO

 

 

Branco Nu Branco são corpos nos corpos da carne porosa do gesso Entidades únicas surgem em qualquer suporte, agarram-se aos arames e aos ferros, amolgam-se no barro, formam o oco e o cheio de imensas formas decepadas, fundem-se em rios líquidos ferventes e arrefecem velozmente na alquimia que os faz renascer no momento da concepção primeira. Rápida e sofregamente às vezes e outras na demora oficinal da técnica, gostam de se mostrar imaculados como o acrílico ou o gesso e convivem serenamente com a natureza condicional desses meios de expressão. Talhados no contorno minimal do branco e na coreografia incandescente do metal, aspiram ao que está para além do finito da exibição dos corpos. Penso que os invento na fímbria do sonho, mas eles são reais. Respiram como gente e pressionam-me para vir a lume. Nascem-me das mãos com a integridade das plantas na terra e dos pássaros no ar. Ganham raízes por todo o meu ser. Uns puxam pelos outros empurrando-se para a luz e ocupam todos os espaços em que me movo… Mergulham no céu e no lugar dos braços aparecem asas que os libertam, para se mostrarem. A vocês e a mim. Não se espantem, é assim mesmo. Não sou eu quem os olha, eles olham-me! Sem que os convide, a todo o instante se apresentam! Interpelam-me! Afirmam-se feitos da enigmática carne dos deuses. Juntos e unidos, na completude de um só, no deleite voluptuoso que entrelaça a candura e o êxtase. Fixando as ânsias do Ser e do ser-se humano. Na nudez inocente que resplandece entre o profano e o divino, buscando o instante supremo que eternize a bem-aventurança. Na pura acepção do branco no branco Dum amor que funda o corpo e a alma.

 

 

Margarida Santos

Junho de 2001

In: Catálogo «O BRANCO NU BRANCO»

 

 

  

CÂNTICO E FUSÃO

 

 

«Não sei cantar-te porque é teu o cântico»

António Ramos Rosa - Amada Vida

 

«Secreta totalidade respirada.»

  

António Ramos Rosa - «Mediadora da Totalidade Secreta»

Mediadoras

 

 

Margarida Santos tem vindo a afirmar-se como uma escultora exclusiva do amor dando forma a uma obra de rara intensidade e beleza plástica que hoje explode em algumas das suas mais originais e densas criações. Escultura no feminino como são femininos o amor e o pensamento na filosofia de Maria Zambrano, metáforas de uma profundidade sensível e anímica. Abertura à transcendência como virtualidade secreta da consciência entendida como «abertura» sem limite, para outra vida que nos aparece como a vida da verdade.» Implica um desprendimento de si representado pela metáfora do voo, em direcção ao outro, primeiro, depois sob o impulso de um incessante desejo de transcendência rumo a um mistério que unifica a vida e a morte, abismo luminoso, fonte e centro de um conhecimento essencial. (1)

 

No pensamento poético o amor surge como vertente essencial de uma gnose que se apoia no poder transfigurador das metáforas. A arte é ela mesma por excelência o terreno das metáforas, continente onde harmoniosamente convivem a realidade e a Atlântida de um imaginário submerso, sonhos milenares da civilização. A poesia, a arte, protegem-nos de um excesso de real, das suas ameaças e pesadelos verdadeiros, hoje tão iminentes, das suas ameaças e pesadelos verdadeiros, hoje tão iminentes, devolvem-nos a metade de um paradigma perdido, totalidade possível do espírito de que o amor permanece a imagem.

 

Alquímica conjugação de opostos complementares, tradição iniciática conhecida e transmitida por alguns. As palavras de amor de grandes poetas do século XX, Paul Éluard, Pablo Neruda, Natália Correia, António Ramos Rosa entre muitos outros identificam precisamente esse intemporal élan para o encontro de uma realidade total de que o amor permanece a chave.

 

Na poesia de Neruda a sensualidade e o amor fundem-se com a nostalgia de uma presença que se transforma num indizível desejo. A ausência aumenta a fantasia e a imagem da mulher amada «mariposa de sonho» enche a alma do poeta de uma doce melancolia (2). Também a poesia de amor de Paul

 

Éluard se alimenta do duplo sortilégio da realidade e do sonho a que a mulher dá o sentido de uma descoberta sem fim, partilhada.

 

O amor reúne sob o seu impulso todas as antíteses, o dia e a noite, o consciente e o inconsciente, o feminino e o masculino. A noite é o mágico horizonte das cores e a mulher a obscura e luminosa, imaginada metade de uma consciência em busca do elo com uma totalidade original, paraíso perdido que a poesia permite recriar neste mundo.

 

Na Escultura de Margarida Santos os corpos estilizados e quase andróginos são metades complementares de uma mesma totalidade, do universo e da alma, o real e o imaginário. Nos momentos de maior sensualidade, de embriaguês, o homem e a mulher são braços de uma mesma e única chama, nascentes do fulgor dos sentidos e fluxo de um mistério essencial, corpo de sentidos, corpo dos signos iluminados da sua escultura.

 

Das formas do amor ao amor das formas, a escultura, discurso do coração cumpre o seu papel de mediadora de universos, mensageira de um conhecimento total, expressão das metáforas. A escultura de Margarida Santos retoma o fio de uma tradição antiga, tão antiga como a alma humana sob o élan de uma liberdade nova. Entre a realidade e o sonho, a volúpia e a utopia, a presença e a ausência, o instante e o infinito, a verdadeira realidade é a do amor. Intraduzível música do silêncio, explosão das formas, flores de uma Primavera breve e maravilhosa.

 

A única, eterna chama que um dia ardeu no coração dos amantes estremece, a ausência, a alquimia do desejo transforma-se em presença, acende súbitos arco-íris, antes que o desencanto se apodere dos instantes felizes. As formas longas e estilizadas pétalas, sonho e movimento ígneo o ímpeto total, o mistério do amor que revive. A poesia das formas é sempre apelo a um outro ausente. O amor é uma metáfora. O poeta Ramos Rosa ainda, o diz:

 

(…) «Quem toca a dura casca do teu nome na noite

A uma porta de folhas

(…) Quem bate a essa porta de folhas na noite

 

Quem bate a essa porta sou eu.» (3)

 

A arte de Margarida Santos, cântico e fogo a dois, fusão, efusão magnífica recria o arquétipo perdido na nostalgia do tempo onde brilha ainda o halo de um paraíso perdido, memória e instante de uma felicidade única que já foi verdade, ficção agora como só a arte a sabe e verdade profunda sempre.

 

 

Notas:

 

1. Zambrano; Maria - « Dois fragmentos sobre o Amor» A Metáfora do Coração

    Tradução de José Bento. Edição Assírio e  Alvim, Lisboa1993, págs.53 a 58.

2. Neruda, Pablo – Viente Poemas de Amor y una Canción Desesperada. Edição Seix Barral Biblioteca Breve, Barcelona 1991, pág. 37.

3. Ramos Rosa, António – «Quem bate a uma Porta de Flores»

    in: Matéria de Amor. Op.cit. pág. 94.

 

 

Maria João Fernandes

Setembro de 2005

In: Catálogo «Quase Tudo»

 

 

 

EXPOSIÇÃO DA MARGARIDA

 

Quando um Museu, sempre casa de cultura, expõe um artista, não apenas com trabalhos de uma exposição, recente, ocupando duas ou três salas, mas o apresenta na totalidade da sua dinâmica criadora com «Público, Privado e Íntimo» - torna-se numa escola de pedagogia, activa, envolvente, dinamizadora e humanizada. Está a Casa Museu Teixeira Lopes de parabéns e a escultora exposta, desde as suas raízes familiares às culturais e íntimas. Raízes que nos alargam perspectivas, nos mergulham na sua mundividência e nos seus interesses, com obras apresentadas, já prontas na eternidade do bronze, ou para publicação e já entregues no editor, como é o caso do livro ligado à escultura e ao patrono desta Casa Museu, de quem foi discípula: «Do Barro ao Bronze - Como nasce uma Escultura» ou ainda não totalmente acabados como «Mulher sem Cabeça -Fragmentos de uma Biografia Roída» I e II ainda entre mãos, como «Luz Íntima e Outras Luzes», com poemas alguns publicados, há anos, em páginas literárias nunca reunidos, a que se juntam inéditos à espera de uma escolha e seriação definitivas, mas que nos dão a dimensão de uma personalidade inquieta, que se procurou nas suas múltiplas facetas. Não apenas na escrita e na escultura, mas através do desenho com corpos de mulher a sair da semente, quase voantes, como a que ilustrou o meu livro de poemas «A Maresia e o Sargaço dos Dias», outras de rosto recôndito entre o filigranado dos seus cabelos a tinta da china, que no entanto é capaz também de dar o peso denso dos penedos de A-Ver-O Mar, ou a envolvente pincelada em círculo da sua pintura. Uma personalidade múltipla e que antes de mais privilegiou a mulher, que só com a sua cabeça pensante, sofrente e cheia de sonhos ou com o seu corpo erecto, desafiador, altiva, com a oferta dos seus pomos de vida, embora com um flanco machadado pela dor, e em lágrimas como «A Mulher que chora» da minha estante - orgulhosa e inteira mesmo amputada e sem braços. A escultura está aqui largamente representada no seu percurso desde a concepção, passando por várias fases até ao bronze polido e envolvente dos corpos, que se procuram, se defrontam e desafiam, se enlaçam num erotismo envolvente que privilegia uma atracção espiralada e balética, em que a depuração se vai verificando até à essência. E tudo isso pode ser visto nas várias salas ou até projectado em D.V.D. ou desde o estudo primeiro e à maquete até à monumentalidade da obra pública, exposta no jardim, embora não na sua totalidade. Obra religiosa O Cristo Crucificado na porta exterior do atelier do mestre Teixeira Lopes e Stº António Maria Claret, para o Colégio dos Carvalhos ou a profana e cívica de que se expõem ainda aspectos da última inaugurada, em Santarém, sobre Aristides de Sousa Mendes e parte do Dr. David Alves da Póvoa de Varzim. No jardim expõe-se ainda a monumentalidade em gesso do «Desafio», que nos leva de volta ao seu erotismo mais envolvente e de que «Espiral» é uma das últimas obras.

Mas a mim a obra que considero mais dramática e mais envolvente de todas é o «Cânone da Harmonia» na sala negra. Para mim a que melhor define a escultora no seu erotismo trágico de paixão íntima já que é feita numa fusão de incompletude sem braços, como um voo de aves sem asas, destinado à morte. E não a vejo nunca onde está, mas projectada, em bronze, no âmago de um labirinto de buxo, num jardim antigo.

 

 

Luísa Dacosta

Novembro de 2008

In Catálogo “Público Privado e íntimo”

 

 

 

<pulsões>

 

 

luz                               vida               mulher

             margarida          arte                      natureza

desenho                   escultura                linha

                   figura                     movimento                humana                       alma         fusão       rpo

                  pulsão                             forma                         sensual

 

                                                                         

                                                   íntimo

 

                                        público  / privado       espelha a coerência do excepcional trajecto artístico da escultora Margarida Santos, consolidado pela irreverência do talento singular, pelo dinamismo da (re)criação da figura humana e na firme expressão de formas com sentido e valor estético de suprema beleza.

 

Obra escultórica marcada por uma linguagem inconfundivelmente única, que justamente a consagra entre os grandes vultos da escultura nacional, evidencia um trabalho de mestria na captação do movimento, explícito ou implícito, histórico ou psicológico, das experiências, das manifestações, numa palavra, das pulsões da natureza humana.

 

Movimento que não é existência, mas essência da própria energia da acção cristalizada, esculpida num primordial de espaço e de tempo que segreda, desvela, emociona e rasga a atenção do observador para as questões da existencialidade que se mostram e/ou se ocultam.

 

Esta linguagem da comunicação visual transmite o pleno de universalidade e mergulha raízes nas linhas de movimento fundamentais cultivadas ao longo das obras de Arte que marcam a história da escultura: na força visível da fascinante expressão da Vitória de Samotrácia (séc.II a.c.); no impressionante impulso da Lamentação, de Niccolo dell’Arca (1435-1494); ou mais próximo, na turbulência vertiginosa das Formas Únicas de Continuidade no Espaço, do futurista Umberto Boccioni (1882-1916). 

 

Em presença de similitude, a obra de Margarida Santos, radica o movimento na perdurabilidade simbólica da energia somática contida nas descargas dos impulsos dos corpos que desejam o amor, a conquista, a crença no fim que pretendem (sem o conseguir completamente) atingir: o prazer. Os recursos distintos praticados na escultura de autor - íntimo - que desenvolve com total cunho original (sublinhamos), engrandecem o caminhar comum da escultura ocidental: da velada sensualidade dos amantes de Rodin (1840-1917); passando pelas lustrosas formas humanas de contemplação de Brancusi (1876-1957); ou, abstractas e subtis figuras femininas de Moore (1898-1986); até à leveza do éden erótico, quase obsessivo, de Margarida Santos, nas múltiplas maravilhas de simbiose de encontro dos corpos em carência eterna de afectos.

 

  

A Cânone da Harmonia (obra do ano 2003), destaco, reveladora de primoroso apuramento técnico, condensa forma perfeitamente modelada da plenitude do amor humano, que em espiral de sentimento, se eleva em espiritualidade de natureza e conteúdo. Bem como, nas esculturas de“10 Cabeças de Mulher” se estilizam os traços do inconsciente / consciente sofredor das idiossincrasias da dor / perversidade / felicidade inexistente.

 

Os desenhos e óleos, identitários do privado, que percorrem a anatomia visual da escultura íntima, coerentes e intensos planos de composição, estruturados por contrastes de tom e cor, estimulam e apelam a forças de compreensão, desequilibram e irradiam as sensações que desocultam a mensagem e provocam a descodificação das representações.

 

Na arte pública, essa estatuária fio condutor da alma dos mestres da distinta “Escola de Gaia” da qual faz parte, privilegia temáticas normalmente de carácter laudatório e honorífico que evidenciam personalidades marcantes da memória colectiva. Concebidas em ligação estrita com a paisagem ou espaço urbano onde coabitam, são criações artísticas simbolicamente pedagógicas e interpretativas de paradigmas de valor cuja memória importa salvaguardar: Santo António Maria Claret (2007); Aristides de Sousa Mendes (2007). O Cristo (1973), presente numa Capela de Gaia, interessante para o estudo do seu esculpir (por se tratar de uma obra pública primeira), vinca traços levemente estilizados, polidos, onde o movimento estático do “crucificado” transmite a paz dum rosto cujos olhos convidam à reflexão e ao recolhimento.  Esta arte pública, normalmente afastada do espaço museológico, assume originalidade expositiva perante os gessos em tamanho real presentes no jardim da Casa-Museu.

                                         

                                                      íntimo

                                        público  r privado       é luz para o conhecimento do percurso da obra escultórica da artista Margarida Santos que não se esgota nos ícones de gesso ou de bronze, não se esgota na plasticidade das telas, pois existem multiplicidade de escritos e pensamentos por si cultivados que importa revelar.

 

                                                                              ò

                                                               “Fixando as ânsias do Ser e do ser-se humano. Na nudez inocente que resplandece entre o profano e o divino, buscando o instante supremo que eternize a bem-aventurança. Dum amor que funda o corpo e a alma.”, Margarida Santos, in catálogo Os corpos também voam, 2003.

 

 

Delfim Sousa

 

Director da Casa-Museu Teixeira Lopes

Novembro de 2008

In Catálogo “Público Privado e íntimo”